No chão de casa, há uma fita isolante preta. Aos sábados, Joilson prega o adesivo de uma ponta à outra para ensinar as filhas a andar em linha reta, enquanto treinam passos de balé. O pedreiro espera ao final da reta. Quando preciso, ergue os próprios pés numa ponta para ensinar as duas meninas, diagnosticadas com autismo, como dançar. Desde março, o feirense divide o tempo entre as obras e a dança.
Dentro de um estúdio de balé, no Centro Cultural Maestro Miro, em Feira de Santana, Joilson Santos, 54, é mais um bailarino. A família se desloca quase 30 minutos, de carro, do bairro de Viveiros em direção ao espaço, no bairro de Muchila. A região onde vive é a terceira mais pobre da cidade. O rendimento médio dos moradores da região é de R$ 754, menos da metade do resto do município, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Na sala, ele, a esposa, Jaqueline e as duas filhas, Isabele e Iasmim, encontram outras oito crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista que dançam como método de tratamento. Todas são acompanhadas por mentores e Joilson é o único homem presente.
“Onde que eu imaginava que ia fazer isso?”, brinca.
Nos pés, o pedreiro calça uma meia preta que substitui a falta de uma sapatilha. A camisa de todos é preta para destacar o azul da roupa das crianças. É a primeira vez que tem qualquer proximidade com balé. As marcas nas pernas e braços mostram uma vida de trabalho braçal. Há 28 anos, Joilson é pedreiro. A casa onde treina com as filhas foi construída por ele, há 10 anos. ”Se tá sendo bom para elas, está sendo bom para mim”, diz Joilson, antes do começo da aula.
Numa aula improvisada na manhã do último domingo especialmente para a reportagem, Joilson traz à sua frente Isabele, 8. Antes das aulas do chamado Ballet Azul, iniciadas no dia 8 de março, a menina sequer falava. A esposa Jaqueline Amorim, 43, é responsável por Iasmin, 10. As duas foram diagnosticadas há sete anos, quando a mãe desconfiou de comportamentos autoagressivos, como bater a própria cabeça contra objetos.
A aula começa impreterivelmente às 10h40. As crianças estão agitadas. Pessoas diagnosticadas com autismo tem fixação na rotina. Por isso, é preciso interromper a conversa em menos de 20 minutos. É quando Joilson senta-se, na segunda fileira de alunos, com a filha.
Em cima do palco
O pedreiro aprende os passos aos poucos. Quando a filha erra um movimento, o pai tenta corrigi-la, mostra como se faz. Os nomes franceses das posições também são um desafio. Nos treinamentos em casa, ele repete para lembrar. “Quando que imaginei que meu marido, bruto desse jeito, ia dançar balé“, brinca Jaqueline, em conversa com a reportagem. Os pais estão em busca de uma escola na cidade que receba as meninas.
No primeiro dia de aula, o plano nem era participar, já que o horário do trabalho era próximo. Na portaria, ele olhou para a esposa e as duas filhas, já arrumadas como bailarinas. “Não posso deixar Isabele sozinha”, falou. O pedreiro desceu do carro e perguntou se poderia ficar na sala. Desde então, às quartas e sextas, Joilson tem a mesma rotina, como se os dias de balé fossem hábito de uma vida.
Na noite de 7 de agosto, pisou pela primeira vez num palco. A plateia não tirava os olhos de Joilson, único pai na apresentação. O diretor de atividades culturais, Luiz Augusto Oliveira, chegou a apresentá-lo a algumas pessoas.
“Mas ele é muito tranquilo. É o comportamento de quem sabe que está fazendo o que se deve fazer, sem nenhum afetamento, nenhuma exibição”, lembra Luiz.
A notícia da apresentação de Joilson ao lado das filhas logo se espalhou pela vizinhança de Viveiros. Na manhã do dia seguinte, a família, dentro de casa, ouviu o barulho no portão. Do lado de fora, uma voz gritava para que “ele virasse homem”. “Não gosto nem de falar sobre isso, já falaram muita coisa feia para a gente”, lembra Jaqueline. Na família e entre amigos, os comentários logo apareceram. O irmão Juaci Salomé, 50, estranhou. “Tá fazendo balé agora, Joilson?”.
Até então, o mais velho dos sete filhos da família era um homem reservado, “rústico”, nas palavras do irmão. “Achei estranho, ele é o mais rústico da família. Mas vi depois que ele tem sensibilidade a ponto de aprender até balé para ajudar as filhas”, diz Juaci. O pai, já falecido, é uma de suas inspirações. “Meu pai falava: no dia que um homem perder o nome dele, ele perde tudo que tem. Quero dar conforto às minhas filhas”, lembra.
No trabalho, os colegas também fizeram chacota. “Quer dizer que você é bruto aqui, mas lá é mansinho”, repete, Joilson, em tom de brincadeira. Hoje, não dá mais importância.
“Aqui é discriminação de tudo”, resume Joilson.
A notícia do pedreiro-bailarino ainda rende no bairro. Na vizinhaça, chegaram a pedir desculpa por comentários anteriores. Nenhum deles tirou Joilson do estúdio de balé. Exceto no último mês, quando começou um trabalho temporário como pedreiro na praia de Cabuçu, no Recôncavo Baiano.
Agora, passa 15 dias fora e 15 dias em casa. Quando retorna, a primeira atividade é arrumar a sala para as horas de balé, treinado de maneira improvisada em casa.
O projeto
No primeiro dia de aula, as meninas corriam em círculos dentro do estúdio. Algumas gritavam, sem entender onde estavam e o que deveriam fazer. As aulas precisaram começar como se o balé fosse uma brincadeira. O professor criava formas alternativas para falar dos nomes dos passos. O pliê, por exemplo, movimento de flexão dos joelhos, se tornou o “dobra e estica”. Os verdadeiros nomes são inseridos na rotina gradativamente.
Annanda, Eliza, Julia e Isabele depois da aula de balé (Foto: Marina Silva/CORREIO) |
A faixa de idade varia de 5 a 10 anos. É a primeira turma do chamado Ballet Azul, cor utilizada para representar o autismo. É também a primeira vez que se tem registro, no Brasil, de aulas de balé para pessoas autistas com acompanhamento dos pais.
“Percebi que os pais seriam grandes mentores. Comecei a pedir que eles repassassem tudo que era ensinado aqui. Vi que começaram a interagir bem mais”, explica o professor Adauto Silva.
As aulas gratuitas são do projeto Arte de Viver, mantido pela Prefeitura de Feira de Santana, e aberto a doações. Somente as crianças, por exemplo, têm roupa apropriada para o balé.
Mundo particular
Antes dos minutos finais, as meninas são convidadas a seguir, sozinhas e na ponta dos pés, uma linha reta. O caminho é aberto por Eduarda, 6, que saltita e sorri. “Ela não tinha coordenação motora nenhuma, não fazia isso. Não pulava, não andava”, conta a mãe Joseni Melo, 44. Logo depois, Eliza, 5, trilha o mesmo caminho, com as mãos suspensas para os lados.
O autismo é um transtorno caracterizado, principalmente, nas alterações na forma de se comunicar com o mundo exterior, seja por meio de palavras ou ações. As conexões cerebrais, entre um neurônio e outro, são mais curtas, frágeis e desorganizadas que o normal. O resultado são padrões como a fixação em comportamentos repetitivos e a inflexibilidade, explica a neuropediatra Cecília Passos.
“O que se observa com grande frequência são crianças que não mantém uma qualidade no olhar, não conseguem iniciar diálogos”, diz.
A Organização Mundial da Saúde estima que uma a cada 160 crianças tenha autismo. São diferentes graus do transtorno. No estúdio de dança, por exemplo, há crianças totalmente reservadas, enquanto outras brincam entre si. O autismo costuma ser associado a fatores genético e ambientais – por isso, fala-se em espectro. A exposição a aparelhos eletrônicos, por exemplo, tem sido citado como um fator de risco. Isso porque os aparelhos não exigem da criança nenhuma necessidade de resposta, apenas o estímulo do visual e do auditivo.
Daí, a indicação de convivência com outras crianças. “Num parquinho, ela brinca com outra criança. É preciso para permanecer a atividade. O estímulo nos dois primeiros anos de vida é fundamental”. Como não é uma doença de notificação compulsória, a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia não tem números relacionados às pessoas diagnosticadas com autismo.
Não há nenhum tratamento padrão para o espectro, justamente pela variação entre os diagnósticos, aplicados a partir de questionários e exames. O uso de medicamentos é geralmente prescrito para os casos de comportamentos agressivos. O papel do balé numa melhora clínica, por exemplo, ainda é desconhecida pela bibliografia científica.
No caso da dança, os benefícios são observados na prática. Depois de uma hora e meia de rodopios, as crianças deitam e são abraçadas pelos mentores. As mães e Joilson se emocionam ao ver a evolução das filhas. É a recompensa final para o esforço.
Do balé à cavalaria
As regras das aulas são criadas conforme as diferenças entre as alunas. “Ela não se concentrava, não tinha coordenação. Hoje, Julia mudou muito”, conta Célia Passos, 63, avó e mentora de uma das meninas. Os relatos da transformação das meninas depois da dança são percebida pelos mentores.
No caso de Isabele, a filha mais nova de Joilson e Jaqueline, a dança possibilitou as primeiras palavras da vida. Para Eliza, 5, mais concentração.
“Tem semana que ela é um amor de pessoa. Mas tudo muda muito. O balé ajudou na interação dela”, conta a mãe, Beliza Andrade.
Nas cortes da Itália renascentista, no século 15, mulheres e homens dançavam num ritmo bastante apreciado pela nobreza local, em apresentações dentro de teatros e galerias. Os dançarinos combinavam diferentes sequências de passos de danças da corte, conta a bailarina do Teatro Castro Alves, Ana Paula Dhremmer.
O balé evolui como uma técnica. E, como técnica, exige disciplina. A memória, o equilíbrio e o senso de trabalho em grupo são os principais. Não há, no entanto, bibliografia que associe os benefícios da dança para transtornos como o autismo.
Na fase de planejamento do Ballet Azul, o professor Adauto precisou mesclar as bibliografias. O que rege as gradações nas aulas é a rotina. Dos tratamentos alternativos para crianças com autismo, o mais conhecido é a Equoterapia.
Na capital baiana, crianças montam em cavalos para melhorar a percepção e a concentração. Os neuropediatras também associam a prática ao ganho de autoconfiança. As aulas são oferecidas gratuitamente pelo Esquadrão de Polícia Montada, em Itapuã, e no 19º Batalhão de Caçadores, no bairro do Cabula
“Quando você coloca a pessoa de espectro autista em contato com cavalo, ela se desloca no tempo e no espaço com uma estratégia criada por ela”, diz Maria Cristina Brito, criadora da Associação Bahiana de Equoterapia, há 25 anos.
Todas as quartas, há três anos, Cauã anda de cavalo como método de terapia. “Trouxe um grande resultado em Cauã. Nessa jornada, ficou mais independente, com coordenação melhor”, comenta o pai, Daniel Almeida. A partir de novembro, os planos de saúde precisarão incluir a equoterapia nos procedimentos cobertos.
Serviço
Centro Especializado em Reabilitação
Endereço Rua Primeira Travessa 22 de Março, Coutos. Ponto de referência: Subúrbio 360
Horário Segunda a sexta, das 7h às 17h (às 16h, na sexta)
Leve ficha de referência do paciente emitida numa unidade de saúde, cartão do SUS e documento com foto
Centro de Referência Estadual para Pessoas com Autismo
Unidade composta por assistentes sociais, educador físico, enfermeiro, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, musicoterapeuta, nutricionista, pedagogo, psicólogos e terapeutas ocupacionais.
Endereço: Praça Dois de Julho, Largo do Campo Grande, 36
Horário: 8h às 17h
Telefone: (71) 3336-6147
Disponibilidade: No momento, há disponibilidade apenas para encontro para orientações sobre o especto. O atendimento começa às 8h. É preciso levar cartão SUS, comprovante e relatório médico.
Centros de Atenção Psicossocial
Endereço Os pontos habilitados na Bahia podem ser vistos no site saude.ba.gov.br. Clique na aba Atenção à Saúde e escolha a opção Atenção Básica.
Leve Cartão SUS, relatório médico e documento com foto
Medicamentos
Os medicamentos controlados para os portadores de autismo são disponibilizados nos Centros de Saúde Mental, 5º Centro e Multicentro Carlos Gomes