Rio Subaé, que corta Santo Amaro, deságua na baía; ex-trabalhadores da indústria retiram do rio o alimento que pode causar mais intoxicação
“Meu coração estava tomando quase meu peito todo”. Essas palavras são do ex-funcionário da Plumbum, João Santana, 70 anos, que, desde o fechamento da fábrica, em 1993, tira o sustento da família do Rio Subaé. Ser pescador foi a única alternativa que restou após ele ser diagnosticado, em 1982, com uma doença cardíaca desencadeada pela contaminação por chumbo no organismo.
Ainda no forno, onde trabalhei por 10 anos, já sofria com os sintomas e, por isso, fui afastado do trabalho. Fiquei indo e vindo até receber a notícia de que a empresa fecharia as portas. Fiquei sem nada, só com a doença e a pesca”, contou.
A alternativa encontrada por Seu João, no entanto, pode estar agravando o seu quadro. O motivo? O Rio Subaé também foi contaminado pelo chumbo, cádmio e outros metais pesados oriundos da antiga Cobrac.
“Ele [o rio] é o depositário de toda a água que a terra tem. Então, todos os metais diluídos e solubilizados vão parar no rio, que já tem um excesso de magnificação de cádmio e chumbo, que fica mais nos sedimentos, o que pode ser tóxico para a vida marinha e para as pessoas que ingerem mariscos e peixes”, explicou Fernando Carvalho, médico e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que estuda o tema há mais de 30 anos.
E a poluição não fica apenas na região de Santo Amaro, no Recôncavo baiano, já que o Rio Subaé deságua na Baía de Todos os Santos. “Em toda a parte norte da Baía de Todos os Santos há contaminação por chumbo, cádmio e outros metais”, afirmou o professor.
A química Tânia Tavares complementou ao dizer que “no rio Subaé, os metais são absorvidos pelos animais, o que é comestível, principalmente cádmio, o que acabou contaminando a população”. Desta forma, o problema vivido por Santo Amaro afeta muito mais pessoas do que os cerca de 60 mil habitantes que hoje vivem na cidade.
A primeira evidência de contaminação das águas que banham a cidade surgiu em 1975, quando foram realizadas medições do nível de metais em dez pontos do Rio Subaé. Nesta época, foram encontrados índices até sessenta vezes maiores do que os estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde como máximo para o chumbo (0,1 mg/kg). A partir dos resultados, o médico Fernando Carvalho se debruçou sobre uma pesquisa envolvendo as comunidades ribeirinhas de Santo Amaro e, 1976, constatou, a partir de amostras de cabelos dos moradores, que não só os funcionários da Plumbum eram prejudicados, como, também, quem ingeria alimentos do rio.
De acordo com o professor, “apesar dos elevados níveis de metais encontrados, era mais preocupante a situação das crianças que tinham entre um e cinco anos e de mulheres com mais de cinquenta anos de idade”. Ficou constatado, ainda, que quanto mais próximo da empresa viviam os moradores de Santo Amaro, maior era a contaminação. Foi assim que, em 1980, o estado da Bahia obrigou a fábrica a retirar todas as pessoas que moravam a um raio de 500 metros da mineradora, o que se acreditou que amenizaria a situação. Foi quando outro estudo, em 1985, identificou que os níveis de cádmio e chumbo nas crianças não tinha reduzido, levando à conclusão de que a toxicidade estava, também, nos alimentos, principalmente aqueles que vinham das águas do Rio Subaé.
Além dos peixes, mariscos, crustáceos, ficou comprovado no mesmo ano que hortelã e alfaces plantados no solo de Santo Amaro também continham grande concentração dos metais.
“Mesmo quem consumia os vegetais daquela área corria o risco de se contaminar”, destacou Fernando Carvalho. “Nesta época [em 1985], a fábrica não permitia mais que a gente entrasse lá. Foi feito um estudo do material atmosférico no entorno da indústria para saber qual era o foco da contaminação e descobriu-se que se tratava do carregamento e descarregamento de caminhão na fábrica, além da própria escória espalhada quando tinha ventania, que atingia a população e o lençol freático”, explicou a química Tânia Tavares.
O CORREIO visitou a comunidade das Caieiras no mês de junho e julho, que fica em uma região de mangue de Santo Amaro e abriga a maior população ribeirinha da cidade. Entre os moradores estava, além de João Santana, o pescador Ednelson Muniz da Cruz, 67 anos, que também trabalhou na antiga Cobrac. “Eu cheguei na fábrica com 32 anos e, após 4 anos, comecei a sentir falta de ar, cansaço, fraqueza nos nervos”, contou. Mais uma vez, após o fechamento da empresa, a pesca foi o sustento de uma família santamarense. Além de não conseguirem mais trabalhos formais, como veremos no próximo domingo (6), os ex-funcionários, já contaminados, hoje enfrentam dificuldades que nem o rio consegue mais resolver.
“O que eu sinto hoje é cansaço, cãibra nas mãos, nos pés, pressão alta constante. Todos os sintomas eu comecei a sentir quando ainda trabalhava na fábrica, mas a intensidade foi aumentando com o tempo, principalmente depois que me tornei pescador”, disse Ednelson, que, quando saiu da Plumbum, aos 42 anos de idade, tinha 75 mg/kg de chumbo no sangue. Para a professora Tânia Tavares, os ex-trabalhadores da indústria e pescadores tinham consciência de que alguma coisa estava fazendo mal à saúde deles, mas, até conseguirem relacionar as doenças aos metais, muito tempo se passou. Fernando Carvalho explicou que, por existir uma fábrica de papel na cidade, muita gente atribuiu a contaminação do rio a ela.
Mas, apesar de todos os estudos que comprovam a toxicidade das águas do Subaé, relacionando a contaminação ao chumbo e ao cádmio, o vice-prefeito de Santo Amaro e secretário de Administração, Justino de Oliveira, disse ao CORREIO que o rio sempre foi farto e a culpada da poluição é, de fato, a fábrica de papel. “Eu gostava de ver gente pescar no Rio Subaé e hoje eu digo que, na época em que a fábrica de chumbo estava na cidade, o rio era farto de peixes, moluscos, crustáceo. Tinha de tudo, até camarão. A presença do camarão é sinal de que a água é saudável, porque ele não sobrevive na água poluída”, declarou.
Os estudos dos professores da Ufba também identificaram que o entorno da Plumbum tinha a maior concentração de escória, sendo o estuário do Rio Subaé o segundo lugar de Santo Amaro com os maiores índices de metais pesados. “O fato de uma pessoa em algum momento ter se alimentado de moluscos não significa que vá se intoxicar ou apresentar outro problema de saúde. A questão é o consumo constante, como acontece nas comunidades ribeirinhas”, esclarece Tânia Tavares.
Presidente da Associação de Pescadores AMA Pesca, José Roque de Jesus Filho, 51 anos, demonstrou receio quanto à possibilidade de se causar um estigma diante dos mariscos e peixes vendidos por santamarenses. “Esse é o nosso sustento. A gente sabe que a água tem poluição, mas, como estamos em um mangue, nos afastamos o máximo possível da margem e pescamos em água aberta”, explicou. O pescador, que é também morador das Caieiras, contou que era de lá que se retirava o cascalho da maré para levar até a fábrica de chumbo. “Os nossos antepassados, que não tinham conhecimento dos riscos, compraram a ideia de melhoria da comunidade a partir da industrialização. Mas, com isso veio o veneno chamado escória”, disse. Roque afirmou, ainda, que é preciso ter cuidado na hora de generalizar a poluição do Subaé. “Onde, em que parte do rio tem mais metais pesados, onde é que tem marisco contaminado, quanto tem de contaminação”, questionou, referindo-se à falta de precisão dos estudos quanto às especificidades dos dados. Isso, no entanto, não tira a preocupação dos santamarenses. “Peixe daqui ninguém compra. Tem uns meninos doidos que tomam banho, porque não sabem das consequências”, confessou Seu João Santana. Mas, Roque disse que o Subaé ainda pode ser o sustento de muitas famílias. “Se vocês comerem uma moqueca de siri feita em minha casa, vão se contaminar? Essa é a questão”, provocou. O presidente da AMA Pesca ainda destacou que outros estudos precisam ser feitos para dar tranquilidade à comunidade das Caieiras. “É necessário que tudo isso seja respondido para que famílias inteiras de pescadores não sejam prejudicadas. Se isso não acontecer, cada ano próximo de eleição, pessoas vão se autopromover com a miséria da comunidade da Caieira, que vive da pesca de Santo Amaro”, declarou. Roque concluiu fazendo um apelo à população e pedindo que se tenha mais cuidado com a natureza. “A importância da natureza, pra mim, é a sobrevivência. A mãe natureza nos dá respostas. Se eu acendo o meu tibério com um palito de fósforo e descarto esse palito sem cuidado, vou ofender a mãe natureza e ela, o Rio Subaé, a Baía de Todos os Santos vão devolver a ofensa por meio do alimento”. |